quarta-feira, 30 de setembro de 2020

"Memórias - Verdades e Mentiras - História 4"...

 



"Memórias - Verdades e Mentiras - História 4"...

https://bcpvneves.blogspot.com/2020/09/memorias-verdades-e-mentiras-historia-1.html


Brinco na rua, como todos os dias, com as outras crianças do bairro,

temos o "nosso bando" que rivaliza e se incompatibiliza com os outros bairros.

Há um sentido especial de unidade, defendemos o nosso território

e  os "nossos"- nas guerras de palavras e pedras, quando a "coisa aquece".

Jogamos futebol, brincamos à apanhada, corremos o dia inteiro

(sou craque - ligeira como uma lebre)

e disputamos corridas em carros de rolamentos, que usamos à vez - estrada abaixo, 

repetidamente, até nos esfolarmos todos - mas sem nunca desistirmos.

Sou esquelética e minúscula (raquítica - segundo me disseram mais tarde quando fui 

para a instituição), mas temível, na minha defesa e dos meus.

Costumo pular pela janela, logo pela manhã e voltar para casa ao escurecer,

mais ao menos a altura em que sei que o pai regressa do trabalho.

Só vou a casa a meio do dia se houver razão de exceção.

Tenho agora cinco anos e começo a perceber 

que os outros miúdos vão a casa almoçar e lanchar.

Em nossa casa só jantamos 

e a maioria das vezes apenas "sopa de cavalo-cansado",

feita com  pão que o pai, padeiro, compra mais barato no trabalho,

água, vinho tinto e açúcar.

Detesto vinho tinto - mas não me atrevo a dizer, 

pois é o único alimento do dia e o pai diz que faz bem ao sangue - dá força

(continuo a não suportar vinho).

O João (um vizinho) é o líder do grupo - é mais velho e maior que todos nós,

 gosta de se impor pela força. 

Desta vez resolveu "gozar" por não termos que comer e eu ser um "esparguete" 

(ouviu a conversa entre a mãe dele e outra vizinha).

A pontaria não falhou e a cabeça do João rachou com um paralelepípedo da calçada,

que lhe acertou em cheio no meio da testa.

Esta foi uma das tais exceções - fui mais cedo para casa, pois o João estava alagado 

em sangue e pela primeira vez a chorar. 

Ninguem me perguntou porque tinha regressado cedo - e eu nada disse.

No dia seguinte batem à porta - e como era domingo, o pai estava em casa.

Adivinhei logo do que se tratava, por isso escondi-me - mas ouvi a mãe do João 

a relatar que tinha passado a noite no hospital, que o filho tinha sido cozido

e que eu podia ter matado o seu menino.

Uma só palavra do pai - e ali estava eu alinhada em frente ao João cabisbaixo 

e à sua mãe indignada. 

Entre o medo de levar uma tareia  e a razão que me levou a agredir o João,

consegui explicar aos adultos, como sentia a minha dignidade aniquilada,

por um amigo ter gozado  perante o grupo por não termos que comer.

Acabou com pedido de desculpas mutuo, com a mãe do João a repreende-lo

e o meu pai a fazer-me ver que as consequências podiam ter sido mais graves.

Eu e o João abraçamo-nos - e o que é certo é que este é que  foi o inicio da nossa 

amizade, éramos depois inseparáveis.


Moral da história : Rico ou pobre - todos temos dignidade.

Apesar da forma impulsiva e errada de reagir - não fui condenada sem ser ouvida.

Muitas vezes as crianças são castigadas - sem lhes ser dada oportunidade

de explicar a razão da sua atitude.

Normalmente a razão não está cem por cento de um só lado - para sermos justos,

temos sempre que avaliar os vários pontos de vista.


Benvinda Neves


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