"Memórias - Verdades e Mentiras - História 4"...
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Brinco na rua, como todos os dias, com as outras crianças do bairro,
temos o "nosso bando" que rivaliza e se incompatibiliza com os outros bairros.
Há um sentido especial de unidade, defendemos o nosso território
e os "nossos"- nas guerras de palavras e pedras, quando a "coisa aquece".
Jogamos futebol, brincamos à apanhada, corremos o dia inteiro
(sou craque - ligeira como uma lebre)
e disputamos corridas em carros de rolamentos, que usamos à vez - estrada abaixo,
repetidamente, até nos esfolarmos todos - mas sem nunca desistirmos.
Sou esquelética e minúscula (raquítica - segundo me disseram mais tarde quando fui
para a instituição), mas temível, na minha defesa e dos meus.
Costumo pular pela janela, logo pela manhã e voltar para casa ao escurecer,
mais ao menos a altura em que sei que o pai regressa do trabalho.
Só vou a casa a meio do dia se houver razão de exceção.
Tenho agora cinco anos e começo a perceber
que os outros miúdos vão a casa almoçar e lanchar.
Em nossa casa só jantamos
e a maioria das vezes apenas "sopa de cavalo-cansado",
feita com pão que o pai, padeiro, compra mais barato no trabalho,
água, vinho tinto e açúcar.
Detesto vinho tinto - mas não me atrevo a dizer,
pois é o único alimento do dia e o pai diz que faz bem ao sangue - dá força
(continuo a não suportar vinho).
O João (um vizinho) é o líder do grupo - é mais velho e maior que todos nós,
gosta de se impor pela força.
Desta vez resolveu "gozar" por não termos que comer e eu ser um "esparguete"
(ouviu a conversa entre a mãe dele e outra vizinha).
A pontaria não falhou e a cabeça do João rachou com um paralelepípedo da calçada,
que lhe acertou em cheio no meio da testa.
Esta foi uma das tais exceções - fui mais cedo para casa, pois o João estava alagado
em sangue e pela primeira vez a chorar.
Ninguem me perguntou porque tinha regressado cedo - e eu nada disse.
No dia seguinte batem à porta - e como era domingo, o pai estava em casa.
Adivinhei logo do que se tratava, por isso escondi-me - mas ouvi a mãe do João
a relatar que tinha passado a noite no hospital, que o filho tinha sido cozido
e que eu podia ter matado o seu menino.
Uma só palavra do pai - e ali estava eu alinhada em frente ao João cabisbaixo
e à sua mãe indignada.
Entre o medo de levar uma tareia e a razão que me levou a agredir o João,
consegui explicar aos adultos, como sentia a minha dignidade aniquilada,
por um amigo ter gozado perante o grupo por não termos que comer.
Acabou com pedido de desculpas mutuo, com a mãe do João a repreende-lo
e o meu pai a fazer-me ver que as consequências podiam ter sido mais graves.
Eu e o João abraçamo-nos - e o que é certo é que este é que foi o inicio da nossa
amizade, éramos depois inseparáveis.
Moral da história : Rico ou pobre - todos temos dignidade.
Apesar da forma impulsiva e errada de reagir - não fui condenada sem ser ouvida.
Muitas vezes as crianças são castigadas - sem lhes ser dada oportunidade
de explicar a razão da sua atitude.
Normalmente a razão não está cem por cento de um só lado - para sermos justos,
temos sempre que avaliar os vários pontos de vista.
Benvinda Neves
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