em que se misturavam o religioso e o pagão, sempre com intenção de moralizar
através do medo do purgatório ou do inferno.
Quanto mais religiosos e menos cultas eram as pessoas, maiores eram as crenças,
de anjos que pisavam as cabeças dos demónios,
que trespassavam com espadas os corações dos dragões que encarnavam o mal,
ou de diabos vestidos de galãs conduzindo quem os seguia por precipícios que os levavam à morte (ainda temos alguns Cabos junto ao mar, com essas lendas).
Também Deus se vestia de pobre e aparecia como sem-abrigo, ou se transformava em cão vadio, a testar a nossa bondade.
As almas não teriam descanso se ao morrer tivéssemos dividas ou pecados que pesassem a consciência. Ficariam eternamente errantes-atormentadas.
Era preciso cuidar do espírito constantemente - e temer um Deus que nos espreitava a toda a hora tentando encontrar forma de nos punir.
Todas as desgraças do mundo eram atribuídas à nossa culpa, quer fosse a pobreza, a abismal desigualdade social, a falta de empregos - o atraso de um país que vivia em ditadura e onde a manipulação era fácil devido à pouca escolaridade do povo e aos medos que a Igreja, cúmplice, incutia.
Associadas a essas histórias com cunho religioso, ainda tínhamos princesas que eram envenenadas por madrastas que lhes ofereciam maças para as matar, "gatas-borralheiras" que eram órfãs escravizadas, gigantes que queriam destruir o mundo, crianças pobres abandonadas pelos pais nas florestas, porque não tinham alimento para lhes dar, etc, etc.
Uma infância riquíssima em contos de terror - com que nos povoavam a imaginação e em que havia sempre uma frase final que contradizia toda a lógica, para que acabasse bem e pelo medo fossemos levados a não nos desviarmos da "moral e bons costumes" - sem nos questionarmos muito, porque Deus e o Diabo respondiam a tudo.
Tenho memórias que me surgem às vezes de situações do dia a dia - em que me interrogo porque surgiu tal pensamento - e de repente "acorda" um desses momentos tantos anos guardado cá dentro.
Como digo vezes sem conta: " a infância acompanha-nos a vida toda" - mesmo a quem não tem consciência que assim é.
São alguns desses episódios que pretendo deixar registados - talvez porque já só eu os lembro e só para mim sejam importantes. Aliás - nem sei bem se para mim são importantes, pois raramente me lembro da maioria deles, mas como sei que "cá estão" (talvez pareça não fazer sentido - mas acredito mesmo que o passado nunca se separa de nós) - de certa forma surgem involuntariamente em muitas das decisões e comportamentos.
Tento a vida toda perceber "quem sou" - e a única certeza é que vou descobrindo um pouco mais em cada dia.
Talvez essa seja razão suficiente para
"Memórias - Verdades e Mentiras"...
História 1:
Naquele tempo tudo era explicado pelo "sobrenatural" - para que fosse mais convincente e o assunto ficasse rapidamente "arrumado".
"Pai, que barulho horrível é o que ouço todas as noites, vindo do telhado?"
"Filha, são as almas penadas que não conseguiram chegar ao céu e não conseguem agora sossegar. Não deves tentar ir lá nunca, porque te podem fazer mal".
Entre este momento e a oportunidade de subir acima da casa para ver as "almas penadas",
que nunca tinha visto - foi uma questão de horas, apenas o tempo de ter a certeza que ele tinha saído para ir trabalhar.
Subir foi uma tarefa dificil, conseguida com a cumplicidade do meu irmão Carlos que obedecia sempre ao que lhe era pedido. Ele segurou a escada em traves de madeira que encostamos à casa e deu-me ajuda a trepar.
Lá em cima havia um grande deposito que recolhia a água da chuva e que a conduzia para a canalização da casa. Com medo da reacção das almas, mas a curiosidade era maior e foi preciso pendurar-me bem no deposito para espreitar para dentro, pois o barulho vinha dali.
Decepção total - o som assustador, resultava do vento forte que vindo da zona montanhosa que rodeia o Funchal ao passar pelos rasgos do deposito rugia na superfície da água e propagava o eco nas parede de cimento.
Não queria acreditar que o pai tinha mentido.
Satisfeita a curiosidade, era imperioso descer, antes de ser apanhada em flagrante.
O problema é que no regresso não tinha a ajuda do mano Carlos que esperava no chão, agarrado à escada e as pernas de uma garota de 4 ou 5 anos eram curtas para os longos espaçamentos dos degraus. Aterrei com a cabeça partida, e muitas escoriações nas pernas e nos braços,
que foi o que me salvou de levar uma tareia por ter desobedecido.
Foi então explicado pelo pai que a mentira se deveu ao receio de um de nós morrer afogado - e a lógica era termos tanto medo que nem tentássemos subir.
Moral da História:
A verdade é sempre preferível à mentira,
ainda que a intenção da mentira seja a protecção dos que amamos.
Benvinda Neves
lindo demais, parabens💓👏👏👏
ResponderEliminarObrigada amiga Faty - grata pela simpatia de ter deixado comentário - é sempre muito bom.
EliminarAo lembrar estas histórias - quero dizer que encontramos dentro de nós respostas a atitudes e pensamentos presentes que vem do passado
Beijinhos obrigada por estar aqui
Se me tivessem respondido "são as almas penadas", eu borrava-me toda com medo e jamais iria lá acima verificar. Não caía e não me esmurrava :)
ResponderEliminarPois Nela - a lógica era essa
EliminarMas nunca podemos partir do princípio que todos reagimos da mesma forma
Eu era uma criança curiosa, rebelde e destemida
Quase todos os miúdos com esta idade são destemidos - porque não tem noção da morte
Fico tão contente que já consegues estar por aqui a comentar. Este é o meu local de eleição para me exprimir
Abracinho amiga bom regresso ao trabalho
Feliz semana