quarta-feira, 24 de junho de 2020

"Passado e presente"...


Digo tantas vezes que todos somos
"passado e presente".

Ainda que o passado não ocupe
a maior parte das  vezes os nossos pensamentos,
fica sempre dentro de nós
e sem duvida que é muito responsável
"por quem somos".

Acorda de vez em quando,
mas sobretudo, quando nos perguntamos 
"porque sou assim?"

Dentro de nós ficam os sentimentos 
e o silêncio do que não dizemos...

Hoje o Facebook trouxe-me imagens 
de há muitos anos
e inundaram-me marés de pensamentos.

  
Penso que esta foto é de 1975 ou 76
(tinha 15 ou 16 anos)

Neste armazém, compras nunca fiz.
Passava horas e horas 
a desmanchar quartos de vaca congelados 
para aviar todas as casas da Aldeia.
 Eu e a Preciosa fomos umas vitimas neste armazém.
Tínhamos sempre as mãos inchadas,
pelo duro que era retalhar com as facas a carne congelada.
Lembro-me que no dia do meu exame do 5º ano do liceu 
(9º de hoje), queria escrever e não conseguia,
 porque não dobrava os dedos de tão inchados que estavam,
 por termos estado na véspera
 a desmanchar uns quantos quartos de vaca.

  
(Aqui devia ter 15 ou 16 anos - Penso que esta foto é de 75/1976).

Do tempo em que fui "comerciante"....heheheh
 não me lembrava disto, 
talvez porque detestava mesmo era o armazém...
e as galinhas - odiava ter que ir buscar os ovos 
no meio de todas aquelas dezenas de bichos
(ainda hoje tenho medo de pegar em galinhas).
 O que vale é que a Preciosa não tinha medo
 e enxotava-as no meio dos meus gritos... 
Trabalhar na rouparia era "pêra-doce," 
comparado com o resto.


(Foto de 1974 - 14 anos)

Trabalhámos sempre muito,
sem remuneração alguma.
Quando arranjamos emprego no exterior,
entregávamos todo o ordenado
e não ficávamos com dinheiro nem para um café.
Ainda assim fomos educados 
para ser felizes e gratos ao mundo
por nos dar a oportunidade 
que não dá a tantos "órfãos-pobres" como nós.


(Penso que seja de 1973 - 13 anos)

Falta aqui o meu irmão Carlos, 
que foi separado de nós e criado na Casa Pia,
porque tinha um défice cognitivo 
(uma maldade tão grande - mas era assim naquele tempo).
Aos seis anos, quando a minha mãe faleceu,
era eu que aquecia o comer, dava aos meus irmãos
e tomava conta da casa enquanto o pai ia trabalhar.

Aos 14 anos eu e algumas das mais velhas
 substituíamos as mães (da instituição) nas folgas semanais,
 cuidávamos dos mais pequenos, da casa 
e fazíamos comida para 10 pessoas.
Tinha um medo terrível 
que me separassem dos meus irmãos,
uma ameaça que vinha muitas vezes dos adultos.


(Foto de 1975 - 15 anos)

Apesar da dureza da nossa educação,
crescemos jovens iguais a todos os do exterior,
 que connosco estudavam.
Posso dizer que por vezes "estigmatizados," 
porque o meio ambiente que nos rodeava,
acreditava que éramos privilegiados em relação aos demais.
Tive professoras e colegas 
que mo afirmavam várias vezes.
Nunca se lembraram de me perguntar
quantas horas  por dia desempenhávamos tarefas,
como eram os nossos fins de semana
ou quantas vezes alguém nos deu colo.
Também sinto que tivemos uma educação 
solida em princípios e que nos deu oportunidades 
que nunca teríamos tido em meio familiar.
Mas não precisava de ter sido tão dura,
nem tão isenta de afectos.
Pesando tudo - os Bons momentos 
superaram os maus.
Éramos cerca de cem miúdos 
que íamos de férias todos juntos
e riamos e cantávamos 
como se o mundo fosse o paraíso.
Cúmplices - para o bem e para o mal.
Tínhamos sentimentos de protecção
 uns com os outros.

Muita coisa mudou ao longo dos anos
e os direitos das crianças
vieram alterar a forma de olhar  a educação.



(1978 - 18 anos - cheios de sonhos e confiança.)

Fui adulta muito cedo.
Aos 7 anos afirmei a primeira vez
que não iria ter filhos - a vida de miséria
e o sentido de protecção sobre os irmãos,
faziam-me pensar assim.
Não que não adore crianças,
mas maternidade para mim não é parir.
Sinto que fui e sou mãe,
 inúmeras vezes ao longo da vida.

Nós escolhemos:
 "morrer de dor, ou supera-la e ficar mais fortes"

A vida não é o que sonhamos,
mas ainda assim é importante sonharmos sempre,
e sabemos aproveitar o que nos é dado.

Nunca perdermos a vontade de 
rir e cantar - esses são os nossos momentos 
de glória.

Talvez um dia  escreva as minhas memórias,
(hoje estou só " a expulsar alguns demónios"),
tantas são, que às vezes penso 
que parece que  tive várias vidas...


Benvinda Neves.


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