quinta-feira, 5 de maio de 2022

Quem estaria preparado?...

Mana, tenho uma coisa terrível para te contar:

"tentaram matar-me o filho,

não conseguiram, porque impedi, mas acabaram por me matar a neta.

Tenho uma dor enorme, por não ter podido impedi-los".

É a guerra da Ucrânia que passa nos noticiários

e desperta a guerra do ultramar, vivida na infância,

quando o pai deu o corpo às balas para salvar a vida do filho.

É o eco da vida que tocamos para a frente

e que acorda dentro de nós e nos domina nos momentos 

em que não controlamos a mente.

Dois AVC e um tumor cerebral,

fazem com que a realidade e a imaginação se misturem

e alternem momentos de grande lucidez, 

com momentos de dor e muito sofrimento.

Curiosamente, o passado está  intacto, com memórias que ficaram

e que ao recordar nos trazem sorrisos aos dois.

Já o presente, vem muitas vezes carregado de dor,

assombrado por alucinações que lhe parecem tão reais

e que não consigo desconstruir, por muito que tente.

"Sabes mana, não estava nada preparado para isto.

Nunca pensei que os meus dias terminassem assim".

Faço-lhe uma festinha no rosto e não consigo dizer nada.

Quem estaria preparado?...

Qual de nós imagina o seu mundo reduzido a uma cama

e quatro paredes, com a mente povoada de pesadelos?

Sabe sempre quem sou, mesmo que esteja a dormir,

basta murmurar o seu nome, para me dizer, 

mesmo de olhos fechados:

 "que bom mana, estás cá".

Outro dia perguntei-lhe se conseguia ver-me,

dado que o tumor o deixou praticamente cego.

"Não preciso ver-te, és a minha mana linda,

que estará sempre dentro da minha cabeça. 

Vejo-te sempre que quero."

A sua personalidade mantem-se. 

Continua o homem trabalhador, cansado, porque acabou de vir da obra,

o sedutor irresistível por quem as auxiliares e enfermeiras se enciúmam,

 o pai e avô babado que adora a família,

preocupa-se com os cuidados de higiene e alimentação,

sobre os quais faz ponderações muito assertivas

e pergunta-me por vários amigos comuns.

É uma viagem "turbulenta,"

para a qual nenhum de nós estará alguma vez preparado.

Quem me dera que cabeça lhe trouxesse 

apenas boas memórias.

Mana, manda cumprimentos meus à malta.

Mando sim, meu querido.


 Benvinda Neves

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